SQ#02: Não faça um sabático!
Posso dizer isso com propriedade. Já pausei minha carreira corporativa algumas vezes. Sai do circuito. E sempre voltei (e bem) quando precisei também - que era um medo que sempre tive.
Fazer pausas do mundo corporativo tem inúmeros benefícios. Muitos. Mas há uma desvantagem, um prejuízo. Por isso considero que quem faz (e já falei com muitos que, assim como eu, fizeram), acaba se dando mal.
Mas antes de eu falar sobre essa parte, queria propor uma reflexão aqui e também contar uma história.
Reflexão (parte 1):
O que você vê nesta imagem abaixo? Guarde isso para daqui a pouco, parte 2.
A história
Era dezembro de 2010, quando fui demitido de uma forma maluca pela segunda vez em pouco mais de 2 anos de formado. Não era nem Síndrome do Impostor, era real: eu não deveria servir para nada.
Até aquele momento da minha vida, eu tinha tudo muito “cronogramado”. Estudar engenharia, aprender a falar inglês, depois alemão, morar fora por um tempo, me formar, conseguir um emprego excelente que pagasse bem (sim, mais importante do que qualquer coisa, para mim o salário era o fator de decisão, naquela época), começar a subir os degraus hierárquicos corporativos, fazer um MBA, voltar, ficar rico, aposentar… etc.
Obviamente que a vida, rapidamente, me ensinou que “não é assim que funciona, amigão, calma lá". Duas demissões, eu perdido, sem saber o que fazer da vida, se é que eu sabia fazer algo útil.
Chega então. Cronogramas são uma furada.
Recolhi minhas meia dúzia de coisas, vendi meu carro, interrompi minha pós graduação, e decidi que iria viajar sem muito destino e sem cronograma (até onde o dinheiro desse ou me viraria para ganhar dinheiro no caminho). O importante era não pensar no amanhã, e estar no hoje. Difícil para quem é ansioso (vive no futuro) como eu, e sempre tinha planos muito bem organizados em planilhas e linhas do tempo.
Decidi fazer o Caminho de Santiago de Compostela. Pronto, vou comprar passagem para a Espanha. Só de ida.
Mas e depois para voltar ao mercado? E se desse tudo errado? Eu ficaria para trás? Eu encontraria todas as respostas que procurava no sabático? Spoiler: não, voltei com mais perguntas, mas tive respostas importantes que só foram ficando claras ao longo do tempo depois.
Peguei minha mochila e fui! Para quem não conhece muito sobre o Caminho de Santiago, recomendo dar um Google - e quem quiser, claro, sou entusiasta da história toda, então podemos falar bastante também (corre-se o risco de eu te convencer a fazer só).
Um resumo:
o Caminho de Santiago é uma rota de peregrinação na Europa (são algumas rotas, na verdade), culminando na Catedral de Santiago de Compostela, na Espanha, onde se acredita que o apóstolo São Tiago esteja sepultado.
O Caminho Francês é a rota mais popular, com cerca de 800 km de distância, saindo de Saint-Jean-Pied-de-Port na França, atrás dos Pirineus, e é percorrida por motivos religiosos, culturais ou pessoais.
Foi a rota que fiz. Por quase 30 dias a pé, caminhando ininterruptamente. Eu, minha mochila e meu diário.
Logo nos primeiros dias, percebi que aquilo era uma perfeita comparação com a jornada da vida. Virei meu diário de trás para frente e comecei a sessão “Metáforas do Caminho (ou da vida)”.
13 grandes aprendizados que tive com o Caminho:
É muito difícil não pensar na chegada, no destino. Concentre-se no presente para aproveitá-lo. Sempre queremos chegar, e nunca estamos atentos ao caminho e as nuances que acontecem nesta jornada. Fiquei todos os dias me concentrando para não pensar em quantos quilómetros faltavam para Santiago, nem nada que não fosse estar ali “no agora” - e isso foi incrível. Eu poderia ficar maluco e desistir se pensasse que teria ainda 700km ou 800km pela frente de caminhada.
A vida (e o Caminho) não é uma competição, mas temos uma natureza competitiva e volta e meia estamos tentando ultrapassar alguém, chegar mais rápido não sei onde, apostando quantas horas faltam para aquela montanha no horizonte, etc. Saia do modo competição, se isso não for algo construtivo e saudável.
Você encontrará muitas pedras pelo caminho. Por incrível que pareça, caminhar sobre pedras e pedregulhos por 10 horas durante um dia acaba com seu corpo. E no dia seguinte você precisa caminhar. E todo dia vai ser assim. Saiba a velocidade ideal para caminhar sobre as pedras, elas sempre vão aparecer.
É preciso ter paciência com as tempestades. As bonanças sempre virão. Peguei muitas chuvas caminhando, muitas dores, muitas pedras, chorei sozinho. Também vi dias maravilhosos, caminhando entre flores e um sentimento de extrema leveza e felicidade.
Esteja aberto para receber as pessoas. Todas estão no mesmo Caminho - e têm problemas (embora nem sempre se perceba, porque todos nós escondemos nossas vulnerabilidades por medo de julgamento).
A vida é feita de encontros e desencontros. Pessoas lá do passado podem voltar, assim como novas podem entrar em sua vida - esteja aberto para isso, só vai agregar. Caminhei com pessoas que “desapareciam” por vários dias ou semanas, e depois apareciam novamente. Estes reencontros eram sempre maravilhosos.
Se você tentar ir mais rápido que o seu limite para acompanhar alguém, uma hora ou outra a conta vai chegar, você vai se machucar, vai cair e possivelmente pode ter que desistir da caminhada. Você tem o seu caminho, a sua história.
Algumas pessoas passam brevemente por nossas vidas e são incríveis. Aproveite. Tive encontros com pessoas maravilhosas e caminhei lado a lado com elas por alguns dias, até que nunca mais as vi na vida.
Ficamos calejados ao longo da caminhada e deixamos de sentir algumas coisas. Precisamos nos protejer, mas não enrijecer.
Nem sempre sabemos a hora de parar, temos uma ganância por sempre mais. "Já caminhei 30km, mas há uma cidade daqui a 12km, vou até lá”. No outro dia você está com um tendão inflamado e precisando de remédios. Respeite-se, e aprenda com seus erros.
Nos comparamos sempre com quem está caminhando à nossa frente. Quase nunca olhamos para quem está atrás de nós. Precisamos saber reconhecer onde estamos e o mérito que temos de estar ali, sermos gratos. Nunca teremos todas as variáveis para poder nos comparar com alguém que nem conhecemos, não sabemos o ponto de partida e nem as oportunidades que apareceram para estas pessoas. Cada um faz o SEU caminho.
O seu limite está muito aquém do que você imagina. Todos os dias quase eu achava impossível caminhar mais 30km ou 40km com tantas dores. E eu sempre conseguia. Fiquei mentalmente muito mais confiante e forte. Desafie seus limites, fique desconfortável para entender e acreditar mais em você.
Na caminhada de Santiago, andamos na direção leste-oeste, andamos de frente para a nossa própria sombra. É um confronto consigo mesmo, enfrentar os próprios medos, inseguranças ou desafios internos. Faça terapia.
No meio do caminho, entre tantas (que sorte a minha) pessoas interessantes que encontrei, tive um jantar com um amigo do caminho, depois de caminharmos o dia todo juntos. Pepe era o nome dele. Espanhol, professor de filosofia Alemã, uns 50 anos de muita experiência de vida. Cada frase, um aprendizado. Neste dia, acabei deixando escapar uma ansiedade momentânea e desabafei: “Tenho um pouco de medo de chegar em Santiago, na verdade. É o meu objetivo final aqui, mas não sei o que farei depois de ter esta missão cumprida - não quero pensar no futuro agora.”
Pepe foi muito enfático e ao mesmo tempo passou um ar de calma e sabedoria:
“O mais importante não é a chegada, mas como você aproveita o caminho. A chegada, por si só, não tem nada demais. É, muitas vezes, sem graça. Não se preocupe, assim que você chegar lá, você saberá com certeza o que fazer em seguida".
Cheguei em Santiago, e sabia o que eu ia fazer depois, de fato. Mas isso é assunto para outro momento - porque a história é mais longa. Resumidamente: fui morar na Índia e tive uma das experiências mais transformadoras da minha vida, podendo ajudar crianças pobres de lá, criando um projeto de crowdfunding chamado Be In Their Shoes.
Ao todo, passei 160 dias viajando sem pensar no futuro - cada passo ia surgindo, sem eu ter planejado absolutamente nada - e, impressionantemente, quando nos abrimos as coisas começam a acontecer. E foi sensacional este exercício!
Quando decidi voltar ao mercado um tempo depois (Empreendi e me demiti - mas isso é papo para outra hora), eu só pensava uma coisa: vou ter que falar das minhas experiências pré-sabático para passar numa entrevista e dar uma amenizada nesta "bagunça" que fiz com minha história. Estudei tudo aquilo para relembrar. Fiz umas 3 entrevistas. Todas seguiram um mesmo padrão:
Primeira parte da entrevista: "sou Marcel, fiz engenharia, trabalhei não sei onde, fui responsável por x, y, z...". Todos os entrevistadores quase dormindo, de tão chato e padrão que era aquilo.
Segunda parte (que eu tentava dar uma minimizada, passava meio rápido): "...resolvi fazer um sabático, fiz o Caminho de Santiago, fui morar na Índia, voltei, abri meu negócio...". A entrevista mudava, toda energia invertia. Os entrevistadores paravam, se debruçavam com olhos atentos para ouvir mais sobre aquilo.
Descobri que a parte mais importante da entrevista não era sobre minhas entregas profissionais (claro que isso contava). Era sobre mim, sobre minhas experiências. Porque isso é o que mais conecta com as pessoas do outro lado da mesa que vão te contratar. Quero dizer: aquilo que era meu medo, que achava que desabonaria meu currículo, era o que mais agregava valor (e não só para entrevistadores, mas para mim, para a minha vida). Aprendi isso pela reação dos outros, porque não acreditei totalmente em mim.
Enfim, depois de muitos aprendizados que tive (alguns deles que aparecem até hoje e ficam mais claros com o passar do tempo), sigo me questionando e não perco de vista a minha busca por sentido, pela intersecção de trabalho, propósito, qualidade de vida, aprendizado constante.
Reflexão - parte 2:
A desvantagem disso tudo? Olhe para a imagem abaixo novamente. Você consegue ver as duas mulheres? A jovem e a idosa? Esta é uma imagem conhecida, feita por um cartunista americano em 1915, chamada “My Wife and My Mother-in-Law” onde ele escreveu: “vejam ai minha esposa e minha sogra, ambas nesta mesma figura. Encontre-as".
"My Wife and My Mother-in-Law" - American cartoonist William Ely Hill (1887–1962)
Faça um esforço para ver. Assim como na vida, enxergar além exige esforço. Uma vez vista a parte da imagem que anteriormente não se via, é praticamente impossível não vê-la mais. Ou ainda, pode ser que te exija esforço mas, se quisermos mesmo, a imagem ou verdade estará lá.
Esse é o prejuízo. Quando se faz um sabático e se rompe o “cordão umbilical” empregatício (o que numas férias não funcionaria, nem há tempo suficiente principalmente porque quase ninguém tira 30 dias de uma vez… “porque pega mal"), vamos longe e enxergamos coisas que não necessariamente seriam vistas quando estamos “imersos do jogo” (nem dá tempo de pensar, sua agenda tá cheia de reuniões “produtivas”).
Depois de um sabático, voltar para o jogo corporativo sem questioná-lo é a parte mais complexa de se conviver. E isso é o que defino como “se dar mal”. Talvez seja o oposto: você decide o que é a vida para você e de que maneira quer enxergá-la e conduzi-la, se quer conhecer a “cozinha do restaurante” ou não, e o que vai fazer com esta informação depois.
Faz sentido levar a vida deste jeito? Competição, ego, comparação, vender quase todo o seu tempo com algo que não te preenche de verdade, lidar com pessoas que, por medo do jogo ou falta de habilidade com ele, te fazem mal, etc? Talvez você tenha um trabalho fantástico. Talvez não. Talvez seja por um tempo até o “próximo passo”. De qualquer maneira, vale repensar se há outras perspectivas e olhares possíveis. As vezes é preciso se afastar para isso, ou se concentrar bem para enxergar além. Tenha coragem (do latim: agir com o coração).
Em resumo: se você não quer se dar mal, fique no automático, ̶i̶g̶n̶o̶r̶â̶n̶c̶i̶a̶ ̶é̶ ̶u̶m̶a̶ ̶b̶e̶n̶ç̶ã̶o̶ da bem menos trabalho. Não vai dar para “desver” algumas coisas depois.
Até semana que vem! Buen Camino!!
Marcel
PS: Se ficou desconfortável ou pensativo(a) agora, acho que cumpri com meu objetivo de certa forma. Comente aqui e vamos falar! Quero muito saber e aprender com você!
PS2: Muito obrigado por usar seu tempo com esta leitura! ;)