SQ#14: O que eu queria ser antes de crescer
Desde pequenos conhecemos a famosa pergunta de 'O que você quer ser quando crescer?'. Eu tenho um amigo que me contou que sempre disse que queria ser frentista de posto de gasolina. Quando criança (somos da década de 80), quando ia com seu pai ao posto de gasolina via sempre o frentista sacando um maço enorme de dinheiro do bolso para dar o troco. “Esse cara deve ser muito rico, quero ser isso quando crescer”.
Talvez, já desde cedo, tenhamos uma formação voltada para maximizar o ganho de dinheiro. Bem-estar, completude, ser realizado no que faz, trabalhar com algo que seja mais conectado à nossa essência… isso ai a gente vê se encaixa depois. Rico infeliz x Pobre feliz. Claramente estou exagerando aqui, não são coisas excludentes, nem concorrentes. Mas é um ponto para pensarmos, juntos, sobre o que valorizamos (ou nos ensinaram a valorizar) desde crianças. E aqui não estou sendo demagogo, dinheiro é bom e eu gosto, tá tudo bem com isso. Mas qual o caminho do meio então?
Quando olho para os meus últimos 20 anos (ou até mais que isso), vejo uma quantidade de coisas completamente diferentes que já fiz, e quantas coisas diferentes eu já quis fazer ou me tornar.
Trabalhei com Business Intelligence programando em SQL
Criei uma macro no Excel para resolver Sudoku (bem útil, eu sei)
Criei um projeto de crowdfunding para comprar tênis para crianças na Índia quando morei lá (minha primeira investida em produção e edição de vídeos lá em 2011). Escrevi esta história aqui, aliás.
Abri uma loja física e também online de artigos esportivos
Explodi um drone na rede de alta tensão fazendo meus vídeos abstratos
Fiz grandes e complexas negociações comerciais
Criei negócios do zero que faturaram dezenas de milhões de reais mensalmente dentro das empresas
Montei um grupo de Samba com os amigos na Faculdade (meu momento de flow)
Tenho uma marcenaria (desativada temporariamente por falta de espaço) onde já fiz dezenas de móveis para minha casa
Abri 3 CNPJs, sendo o mais recente a Limbic - minha produtora de audiovisual
Criei esta Newsletter que “vos fala” e uma série de documentários/podcasts sobre pessoas que fizeram mudanças de carreira
Orientação Vocacional
E se eu perguntasse a um orientador vocacional (muita zoeira esse nome eu acho) o que eu poderia ser, quando tinha 17 anos, qual seria a resposta? Empreendedor, administrador, programador, desenvolvedor web, músico, fotógrafo, escritor… mas na época, além de eu ainda não ter experimentado a maioria destas coisas, houve uma conversa mais profunda (contém ironia) e a conclusão foi:
“você é curioso e monta várias coisas, além de se dar muito bem com as exatas… então é engenharia sua vocação”.
Naquela época, ao final da década de 1990 (pasmem, foi ontem!), nem se sabia a quantidade de novas profissões que surgiriam no futuro próximo (não existia Youtube, a internet era discada, iPhone ainda demoraria quase uma década para chegar, a creator economy nem era um termo, e inteligência artificial era o desenho dos Jetsons).
Além disso, com base no passado daquele momento, ainda era um pouco antiquado não se pensar em uma vida estável e sequencial (e não questionável) de “estuda → entra na empresa X (para vestir a camisa) → aposenta nesta empresa”. No meio dessa sequência, havia há outras determinações sociais (namora → casa → filhos → compra casa própria…). Seria improvável, portanto, alguma orientação vocacional mais aberta, mais sensata talvez, do tipo:
“Relaxa! Agora o que pode te fazer sentido é A, mas você vai viver e experimentar muitas coisas ainda, e a escolha de agora não vai ser pra sempre - o mundo vai mudar, e o que valeu até agora provavelmente nem valerá mais depois”.
O que quero dizer com tudo isso:
Somos uma metamorfose ambulante, e o que queremos hoje é diferente do que queríamos há muitos anos atrás e vai ser diferente do que vamos querer daqui uns anos. Você já sabe isso por experiência própria, de vida.
Não temos capacidade de prever oportunidades e novas profissões, ou modelos de vida, que vão existir (ou deixar de existir) nos próximos anos.
Mas, então, como ter prazer no que se faz, trabalhar com o que se gosta?
Comecei a ler sobre a teoria da autodeterminação (Self-Determination Theory - SDT), desenvolvida pelo psicólogo motivacional americano Edward Deci. Há aproximadamente 40 anos, ele vem pesquisando a motivação das pessoas e a satisfação no trabalho, em colaboração com centenas de psicólogos ao redor do mundo. Segundo sua visão, existem três elementos cruciais (que ele chama de necessidades psicológicas básicas) que tornam um trabalho ou função gratificantes: autonomia, competência e relacionamentos.
Autonomia: capacidade de ter controle sobre seu próprio tempo e ações. Profissões que proporcionam uma boa dose de autonomia tendem a levar a uma maior satisfação no trabalho, pois permitem que as pessoas tomem decisões e tenham controle sobre suas tarefas e horários.
Competência: sentimento de habilidade (maestria) e importância em seu trabalho. Quando as pessoas se sentem competentes no que fazem, elas extraem um senso de realização e valor de seu trabalho, o que contribui para uma satisfação profissional gratificante.
Relacionamento: qualidade das suas conexões com outras pessoas, seja no ambiente de trabalho ou em relações pessoais fora dele. Trata-se de sentir-se amado(a), respeitado(a) e como parte integrante de um grupo. Um sentimento positivo de conexão pode levar a sentimentos de realização e pertencimento no trabalho.
Recentemente tenho analisado toda minha carreira, minhas experiências de vida e profissionais, e tentado encontrar algum padrão, uma linha de elementos onde tenha sido uníssona a minha satisfação.
E, então, com base nisso, eu adicionaria 5 pontos um pouco mais específicos (talvez particulares) aos do Edward Deci.
Criar ou manter: um padrão meu é gostar do que chamo de "folha em branco". A maioria dos lugares em que trabalhei onde eu tinha que montar coisas do zero (o que foi um padrão na minha carreira, inclusive), foi onde eu tive a maior satisfação e motivação. Até o momento em que o que eu montava ficava grande e estável, e eu me esgotava - e partia para outra. Já fui contratado para “tocar” coisas já estabelecidas e, para mim, foi um tédio, uma sensação de inutilidade completa. O que você gosta? Construir coisas novas ou aprimorar e gerenciar as já existentes?
Aprendizado: se não envolver uma curva de aprendizado inclinada, eu me desmotivo rápido. O que acaba se ligando ao ponto anterior também, pois para criar é preciso aprender novas tecnologias, novas maneiras de se fazer, inventar, testar e errar - e ai que entra a autonomia! Enquanto minha curva estava inclinada, estava tudo bem (mesmo com desconforto e insegurança de se fazer algo novo). Curva ficava flat? Bora pro próximo desafio. Você prefere segurança no domínio de algo ou o desconforto de ter que aprender sempre?
Gerenciar gente ou ser gerenciado: dinheiro (como o do frentista lá que nos atrai desde crianças) é associado a cargos. E então cargo → dinheiro → sucesso. Por isso a busca incessante pelo topo da escada corporativa, e esse empurra-empurra pra subir, que muitas vezes ultrapassa limites éticos e morais (ser humano é competitivo e se transforma nestes ambientes). Mas a real é que, apesar de ter me dado bem com gestão de pessoas sendo executivo de grandes empresas e tendo times enormes, me sinto mais confortável e com prazer fazendo minhas próprias coisas - mesmo que isso não traga glamour social. Desde fazer instalações elétricas em casa, a montar móveis na minha marcenaria, captar e editar vídeos, ou montar minhas maluquices no Excel, tudo que faço mais sozinho me dá mais prazer (porque também é sobre autonomia). Você prefere fazer ou motivar para que façam?
Estar no Spotlight (centro das atenções): outro tema que é fácil de entendermos sobre o comportamento humano aqui é olharmos a quantidade de fotos de gente no palco com um microfone na mão no Linkedin. É meio que o ápice da pessoa postar aquilo, geralmente associado com um "hoje tive a oportunidade de falar sobre…". E não tem nada de errado nisso. Estranhamente, ao mesmo tempo que criticamos essa atitude, valorizamos quem tá no centro das atenções. Querer estar no centro não é um problema, desde que a quantidade de curtidas ou a aprovação externa não sejam fatores únicos relacionados à sua autoconfiança ou bem estar (cuide do do seu ego). Você prefere estar no palco ou na plateia?
Equilíbrio de vida: Em outras palavras, o quanto você valoriza sua vida pessoal em relação à profissional? Quanto tempo você reserva para a convivência com amigos e familiares? Onde você mora e qual é a duração do trajeto entre sua casa e o trabalho? Você viaja a trabalho porque gosta ou porque é obrigado? Algumas pessoas desejam explorar o mundo, enquanto outras preferem ter um lugar fixo para chamar de lar. E o seu trabalho permite que você tenha um horário definido para encerrar o expediente? Você consegue realmente desconectar-se das atividades profissionais e dedicar-se a outros interesses, ou existe a expectativa de que você esteja sempre disponível, sempre de prontidão? Escrevi sobre o tempo que gastamos com as pessoas nesta Newsletter aqui (uma das que mais gosto, aliás).
Como saber o que fazer com a sua vida?
Bem, se eu de alguma forma tivesse o poder de viajar no tempo e pudesse conversar com o Marcel de 17 anos de idade, eu diria a ele duas coisas:
Primeiro, simplesmente siga seus interesses e dedique-se fortemente a eles, porque nenhum de nós pode simplesmente tirar uma paixão da cartola. E também, ninguém realmente entende quais características e qualidades do trabalho realmente nos atraem até que ganhemos experiência. Então, vá lá e adquira o máximo de experiências possíveis.
E, em segundo lugar, enquanto ganha essa experiência, seja observador. De si mesmo. Talvez ter um diário e refletir sobre essas qualidades e quaisquer outras que venham à mente, e como o trabalho atual se relaciona com elas, pode ser bastante útil e elucidador.
Por fim, se você conseguir fazer isso enquanto continua a aprimorar suas habilidades e a construir novos relacionamentos ao longo do tempo, é provável que, onde quer que se encontre trabalhando no futuro, qualquer que seja o cargo, você encontre satisfação no que faz.
TL;DR:
O que você queria ser quando crescesse na época de infância era algo em transformação, e com o contexto e sabedoria que você tinha. Crescemos o tempo todo, não há um só degrau (ou transformação) da criança para o adulto para pensarmos em uma só possibilidade. Nem acredito que haja uma opinião que dure “até você crescer”.
O que você já quis é diferente do que quer, e o do que vai querer no futuro.
Não sabemos quais as possibilidades de vida e trabalho do futuro (próximo!)
Ter autonomia para fazer o que se faz, ser bom naquilo que você faz e se relacionar com pessoas é um ótimo início de caminho para você perceber a natureza do trabalho que te fará satisfeito
Avalie também algumas outras características, sobretudo sobre (i) criar ou manter, (ii) gerenciar ou ser gerenciado, (iii) balanço de tempo entre trabalho e vida pessoal.
Experimentar é a única maneira de entender, verdadeiramente, do que se gosta.
Observe-se. Tome notas. Faça terapia.
Aprenda sobre você o tempo todo. Sua próxima versão está chegando e você nem entendeu direito a atual ainda.
A jornada para descobrir o que nos completa profissionalmente é tão variada e dinâmica quanto nós mesmos. Não é um caminho linear, mas uma exploração constante que desafia normas e expectativas. O equilíbrio entre realização financeira e satisfação pessoal não é um destino, mas uma busca contínua. Talvez a questão não seja ‘O que você quer ser quando crescer?’, pois estamos nos tornando algo diferente todos os dias. Talvez a questão seja ‘Como você quer evoluir e encontrar significado em sua jornada?’. A resposta está na experimentação, na reflexão e na coragem de seguir nossos próprios caminhos, mesmo quando são imprevisíveis e íngremes.
Para continuar explorando o tema e entender cada vez mais, montei uma série de documentários em vídeo, onde converso com pessoas que foram buscar seus sonhos, atrás daquilo que julgaram ser seus propósitos, e fizeram mudanças de carreira nada triviais. O Renato, profissional da TI que virou Piloto de Avião, ou a Thaís que deixou a empresa da família para ser designer já foram para o ar. Nesta semana estou gravando mais uma história incrível. Spoiler: depois de 20 anos de mundo corporativo, tornou-se Youtuber Marceneiro de sucesso.
PS: Estes documentários sairão como versões aqui nesta Newsletter. Toda terça às 19h.
Por hoje é só! Até semana que vem.
Marcel - Status Quê?
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